Estive pesquisando e achei essa "joia",é a biografia resumida em que na minha opinião é um dos maiores pensadores brasileiros de nossa época ,leiam e reflitam !
MILTON SANTOS (1926 / 2001 )
Biografia Resumida
O Prof. Dr. Milton Santos (Milton de Almeida Santos ou Milton Almeida dos Santos), nasceu em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, no dia 03 de Maio de 1926. Geógrafo e livre pensador brasileiro, homem amoroso, afável, fino, discreto e combativo, dizia que a maior coragem, nos dias atuais, é pensar, coragem que sempre teve. Doutor honoris causa em vários países, ganhador do prêmio Vautrin Lud, em 1994 ( o prêmio Nobel da geografia), professor em diversos países (em função do exílio político causado pela ditadura de 1964), autor de cerca de 40 livros e membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, entre outros.
O Prof. Milton Santos formou-se em Direito no ano de 1948, pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), foi professor em Ilhéus e Salvador, autor de livros, que surpreenderam os geógrafos brasileiros e de todo o mundo, pela originalidade e audácia: "O Povoamento da Bahia" (48), "O Futuro da Geografia" (53), "Zona do Cacau" (55) entre muitos outros. Em 1958, já voltava da Universidade de Estrasburgo, da França, com o doutorado em Geografia, trabalhou no jornal "A Tarde" e na CPE (Comissão de Planejamento Econômico-BA), precursora da Sudene, foi preso em 1964 e exilado. Passou o período entre 1964 a 1977 ensinando na França, Estados Unidos, Canadá, Peru, Venezuela, Tânzania; escrevendo e lutando por suas idéias. Foi o único brasileiro e receber um "prêmio Nobel", o Vautrin Lud, que é como um Nobel de Geografia. Outras de suas magistrais obras são: "Por Uma Outra Globalização" e "Território e Sociedade no Século XXI" (editora Record) .
Milton Santos, este grande brasileiro, morreu em São Paulo-SP, no dia 24 de Junho de 2001, aos 75 anos, vítima de câncer.
Prof. Milton Santos: Pensamento de Combate
( por Cláudio Cordovil )
Um momento de vida inteligente na televisão brasileira. A entrevista do geógrafo Milton Almeida dos Santos, exibida anos atrás no programa Roda Viva (uma produção da TV Cultura, retransmitida pela TVE), revelou a milhares de telespectadores o vigor do pensamento de um dos mais respeitados intelectuais brasileiros. Professor titular da USP e considerado por seus pares um dos mais conceituados geógrafos vivos do mundo, Milton Santos quase se compara ao intelectual americano Noam Chomsky, em termos de radicalidade de sua original reflexão de resistência em tempos de "pensamento único". Com 12 títulos de doutor honoris causa de respeitadas universidades estrangeiras, esse baiano afável é um escritor prolífico, com mais de 40 livros publicados. Homem que sempre cultivou mais discípulos do que parceiros, pelo grosso calibre de suas denúncias da cooptação de intelectuais que emudecem diante das tentações do mercado e dos riscos da globalização. Milton Santos foi o único estudioso fora do mundo anglo-saxão a receber o que pode ser considerado o Nobel da Geografia pelo conjunto de sua obra o prêmio Vantrin Lud. Durante a exibição de sua entrevista no Roda Viva, os telefones do programa não pararam de tocar. "Muitas pessoas ligaram emocionadas e entusiasmadas, vibrando e agradecendo a emissora pela transmissão. O teor das declarações do público se assemelhou ao verificado com a entrevista de Noam Chomsky", comenta Marco Nascimento, diretor de jornalismo da TV Cultura.
# - Em entrevista no programa Roda Viva, o senhor afirmou que observamos atualmente uma capitulação dos intelectuais brasileiros diante da situação do país. Como define essa capitulação?
* A capitulação dos intelectuais é um fenômeno internacional já antigo e que se agravou com a globalização. Isso de alguma maneira perdura com a democracia de mercado de hoje. A intelectualidade brasileira se organiza através de grupos fechados que necessitam mais de fazer pressão, para sobreviver, do que de se reunir para pesquisar. Por isso tendem a se aproximar do establishment, o que reduz a sua força de pensamento, imaginação e crítica. Isso equivale a capitular. No Brasil, há exceções, mas essa síndrome precisa de uma cura urgente.
# - Em uma de suas declarações mais contundentes no programa Roda Viva, o senhor afirmou que o pobre é neste momento o único ator social no Brasil com o qual podemos aprender algo de verdadeiro. Poderia explicar?
* Em A natureza do espaço falo um pouco sobre essa idéia. As classes médias são confortáveis de um modo geral. O conforto cria dificuldades na visão do futuro. O conforto quer estender o presente que está simpático. O conforto, como a memória, é inimigo da descoberta. No caso do Brasil isso é mais grave, porque esse conforto veio com a difusão do consumo. O consumo é ele próprio um emoliente, Ele amolece. Os pobres, sobretudo os pobres urbanos, não têm o emprego, mas têm o trabalho, que é o resultado de uma descoberta cotidiana. Esse trabalho raramente é bem pago, enquanto o mundo dos objetos se amplia.
# - O senhor fala da sabedoria da escassez...
* Exatamente. Fui buscar esse conceito em Sartre, quando ele fala da escassez que joga uma pessoa contra a outra na disputa pelo que é limitado. Essa experiência da escassez é que faz a ponte entre a necessidade e o entendimento. Como a escassez sempre vai mudando, devido a aceleração contemporânea, o pobre acaba descobrindo que não vai nunca morar na Ipanema da novela, que jamais vai alcançar aquelas coisas bonitas que vê. Ele continua vendo, mas está seguro hoje de que não as alcançará. Gostaria de dizer que a classe média já começa a conhecer a experiência da escassez. E isso pode ser bom. Como a classe média, na sua formação, tem uma capacidade de codificação maior, isso vai nos levar a uma precipitação do movimento social, da produção da consciência, ainda que seja de uma maneira incompleta.
# - Pesquisa divulgada mês passado na França revelou que 72% dos franceses oscilam entre o medo e a revolta com relação ao atual modelo econômico. Acredita que a situação francesa seja muito distinta da brasileira? Como explica a aprovação popular da política econômica brasileira?
* Essa questão pode ser desdobrada em duas. No Brasil, a expansão do consumo veio com o regime autoritário e continua com a democracia de mercado. Por conseguinte, essa expansão do consumo junto a essas duas estruturas de controle faz com que a opinião pública seja amortecida. Há muito mais espaço para o consumidor, esse espaço legitimado agora com o código do consumidor, e nada para o cidadão. Dessa forma, torna-se mais fácil aceitar um mundo onde são as coisas que comandam, e não os valores.
# - O que acontece no caso do Brasil?
* Esse apego enorme às coisas faz com que a coisa mais representativa, que atualmente é o Real, a coisa que faz adquirir coisas, interfira no resultado das pesquisas favoráveis à moeda. Mas, a mesma pessoa que gosta do Real não gosta do desemprego, não gosta da insegurança. De modo que vivemos esse paradoxo que está rebaixado na consciência das pessoas. O que aparece lá em cima é o Real, a satisfação com a moeda, mas há uma infinidade de situações, que não são latentes, mas reais, embora não apareçam como sistema na consciência. Por isso temos a impressão de que o Brasil não está reagindo, mas penso que há um vulcão adormecido.
# - Viviane Forrester, em seu best seller francês intitulado O horror econômico, afirma que vivemos no meio de uma "magnífica ilusão". "Nossos conceitos de trabalho e de desemprego, manipulados por políticos, não tem mais qualquer substância". Ela anuncia que uma nova civilização já se iniciou e nela só uma pequena parcela da população mundial encontrará trabalho. O que pensa dessa afirmação?
* Há anos eu já afirmava que a globalização, tal como era considerada, começa por ser uma fábula. Essa fábula se tornou possível exatamente pela violência da informação. Produzem-se idéias que são impostas. Nesse sentido, o que Forrester afirma a propósito da "magnífica ilusão" me parece correto. Mas é a partir dessa ilusão e dessa fábula que são impostas fórmulas que conduzem os países em sua economia, política e relações sociais. São fábulas perversas, como essa que fazem com que não discutamos a solidariedade. Toda a discussão sobre a previdência se faz em bases contábeis e não levando em conta que a nação tem que ser solidária e todos temos de estar juntos. Todos os debates são feitos naturalizando a perversidade, através da naturalização da desigualdade social. É uma tristeza que a discussão sobrfe o desemprego se limite a uma relação mensal de números falsos.
# - Como assim?
* Vivemos uma fase de politização das estatísticas. Isso se dá de forma descarada no Brasil em todos os campos da vida social e econômica. Há uma distribuição de estatísticas de forma maciça, mas que não permite análise porque não há desagregação que conduz a uma interpretação. a apresentação da estatística já é enviesada. Não se pode atribuir às pesquisas de opinião tão disseminadas hoje em dia a qualidade de fornecer o entendimento das estruturas e processos sociais. A estatística é retrato encomendado de apenas uma parcela do social, mas não é o social. Essas pesquisas têm um papel de deformação da vida política e degradação da vida partidária. Na última campanha foi curioso ver como os candidatos decidiam ir mudando em função das pesquisas.
#- Parece que vivemos um paradoxo na era da informação: a sociedade parece cada vez mais opaca, menos decifrável. Temos mais estatísticas, mas entendemos menos a sociedade. A que atribui esse fenômeno?
* A violência da informação também se deve ao fato de que a grande indústria da comunicação é extremamente concentrada. Éconcentrada nas mesmas mãos que concentram a competitividade. Esta não tem qualquer finalidade. Até hoje não se descobriu por que as grandes empresas globais competem. Todos os dias nos defrontamos com uma interpretação já feita, mas que é simplista, ilusória e produz uma fábula. Isso gera esse efeito de opacidade. Ela é menor nos países onde a figura do cidadão pôde se cristalizar ao longo dos séculos e maior nos países onde a cidadania não se concretizou, como na África e na América Latina.
#- A globalização parece haver reduzido a influência dos mercados nacionais que constituíam um dos fundamentos do poder do Estado-nação. O que é feito de noções tão caras à geografia, como Estado, nação e território?
* Prefiro dizer que o mercado nacional é o nome fantasia do mercado global. Esse mercado global trabalha com alguns pontos do território e exige que os estados nacionais aparelhem esses pontos. As empresas globais ali se instalam. É nesses pontos privilegiados que elas produzem nacionalmente uma produção global. Mas há também o território: todo o resto utilizado pelas outras empresas e pela maioria esmagadora dos homens que não vivem sem esses território. Podemos encarar de outra maneira a questão do território, do mercado e do Estado nacional. Esse mercado global travestido de mercado nacional não tem um reflexo, nem obrigatório nem imediato, sobre a maior parte da população. Ele se amplia com o desemprego, com a fome, sem que a maior parte da população seja beneficiária, enquanto o mercado territorial é o que tem a ver com a maioria da população e acaba sendo o sustentáculo do Estado.
#- No programa Roda Viva o senhor sugeriu que o prefeito Celso Pitta está sofrendo um linchamento, que o senhor parece atribuir ao racismo. E se as denúncias se provarem verdadeiras? Acredita que sua crítica foi feita em momento oportuno?
* Na sociedade da informação em que vivemos há linchados e linchados. O caso dos precatórios mostra que há linchamentos de graus variáveis. Minha colocação tem um caráter político no sentido maior. Desejo a aceitação mais tranqüila do negro na sociedade brasileira.
# - Que dificuldades lhe trazem sua condição de intelectual negro e o tom destoante de seu pensamento no establishment acadêmico?
* Pude me manter como outsider. Em que medida ser outsider no meu caso não se deve ao fato de eu ser negro? Os prêmios são um dia e vivem no círculo que sabe deles. A minha vida de todos os dias é a de negro. como tal, mantenho com a sociedade uma relação de negro. No Brasil, ela não é das mais confortáveis.
MILTON SANTOS: POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO - A DE TODOS
Prof. Dr. Délio Mendes
Para o mundo intelectual brasileiro entrou em encantamento um dos seus principais pensadores. E se encantou em plena produção, no seu momento mais fértil. Produzia uma crítica à globalização considerando que a mesma tem sido levada a efeito do ponto de vista do capital financeiro. Propunha uma outra globalização. Intelectual estudioso do espaço e do tempo, compreendeu, em seu tempo, o espaço como produção do homem na relação com a totalidade da natureza e a intermediação da técnica. Técnica que corresponde a um tempo determinado pela produção dos homens. Homem do seu tempo, Milton Santos se fez presente em todos os grandes embates intelectuais da última metade do século passado. O seu tempo e o seu espaço foram o tempo e o espaço da globalização. Que ele queria que fosse outra. Ou melhor, a outra, a globalização de todos os excluídos, resgatados em uma sinfonia de humanização. Milton se fez maestro da paz e da felicidade. Felicidade de todos. Buscou uma globalização que unisse todas as mulheres e todos os homens, sob égide do encontro.
Conheci Milton, no Recife, em 1978, quando estava às voltas com Pobreza urbana. Inovava ao compreender o mundo formal e informal, como duas faces de um circuito comandado desde a acumulação ampliada do capital.[1] Inovava e agitava. Milton era, sobretudo, um agitador. Agitador de idéias, no melhor sentido de um intelectual da sua estatura. Avesso aos partidarismos, falava da isenção do intelectual para exercitar a crítica. Por isso, sempre esteve radicalmente ao lado do seu povo. Em Pobreza urbana se faz crítico de um debate sobre a desigualdade que se presta, mais e muito mais, à louvação mesquinha de intelectuais vazios entre si, do que a colocação correta e crítica dos grandes problemas da exclusão. “Indubitavelmente, o tom de certos trabalhos, nos quais o jogo conhecido das referências recíprocas entre autores "freqüentemente substitui uma análise dos fatos, tem contribuído para a perpetuação do debate, que, embora pretenda atacar o problema em profundidade, perde-se numa guerrilha semântica confusa.”[2] Esta crítica direta acompanha uma análise da produção intelectual da pobreza que, segundo Milton, pouco tinha contribuído para a resolução dos problemas da pobreza. Para este jogo de vaidades não se contava com a sua participação.
A história do homem, compreendida como a história da superação, faz do autor de Pobreza urbana, um profeta da evolução. “A história do homem sobre a terra é a história de uma ruptura progressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para poder dominá-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudança na história da natureza humana. Hoje, com a tecnociência, alcançamos o estágio supremo dessa evolução.”[3] A visão da técnica, do espaço e do tempo, assume, nesta compreensão, um caráter inovador, na medida em que passa a apreender a dimensão da história, da história de temporalidades técnicas que permite produzir uma sociedade determinada, empregando, de acordo com a técnica predominante, uma certa quantidade de trabalho humano. Milton abre o conceito de território, mostrando-o como o lugar do drama social “Bom, há nessa desordem a oportunidade intelectual de nos deixar ver como o território revela o drama da nação, porque ele é, eu creio, muito mais visível através do território do que por intermédio de qualquer outra instância da sociedade. A minha impressão é que o território, revela as contradições muito mais fortemente.”[4] Da relação técnica, espaço e tempo, revela-se a história, ou melhor, uma outra história, no palco iluminado expresso no território. Esta outra história aponta para as desigualdades. Faz emergir a exclusão da maioria da população concentrada em um território degradado, onde pobres de todas as naturezas lutam contra todos os carecimentos.
Milton se mostra mais crítico no livro recente Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal[5], onde nos aponta para um mundo de difícil percepção por conta da confusão reinante que nos tem levado à perplexidade. Portanto, toma para análise a realidade relacional do ser humano, e a esta realidade relacional perversa atribui os males revelados pelo território. Não aceita explicações mecanicistas pelo seu caráter insuficiente. Atribuindo ao desenrolar da história, capitaneada por determinados segmentos da sociedade, os males que tornam difícil a vida da maioria das mulheres e dos homens. Coloca na base deste processo confuso a tirania do dinheiro e da informação, transcende a Marx, e o dinheiro passa a produzir dinheiro, dominando o mundo da produção de mercadorias. Especulação, financeirização. A globalização é feita menor, sob a égide dos bancos e dos banqueiros, criando uma fábrica de perversidades. “O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes.”[6]
Caminhando no terreno da mais valia global, Por uma outra globalização apreende o papel dos intelectuais. Todos trabalhando a ampliação desta mais valia. Trabalhando para ampliar a produtividade como se este fosse um trabalho abstrato, e não a produção de urna vantagem para o capital.[7] É preciso reconhecer este momento e a sua peculiaridade. A de ser um momento para o capital. E todas as ações movem-se na direção do reproduzir para os ricos. Entretanto, se esta é uma constatação, não é, felizmente, uma fatalidade. Milton nos aponta para um outro conhecimento. Para a possibilidade de conhecer, para a liberdade do ser humano. Para modificar o mundo. Para que o conhecimento se produza no interior da crítica, sem abstrações alienantes, sem reconhecimentos incompletos que produzem falsas compreensões e encobrem os verdadeiros dramas sociais. E assim, pode-se evitar a espera para que cresça o bolo, evitando a indigência de uma quantidade grande de seres humanos.
É o início de uma outra cognoscibilidade do planeta. Um planeta que conta com todas as possibilidades de ser desvendado. Mas, nem sempre o conhecer é possível. A informação nem sempre se propõe a informar, e sim a convencer acerca das possibilidades e das vantagens das mercadorias. "O que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde.”[8] A contradição se faz e se refaz na impossibilidade de se produzir, de imediato, uma informação libertadora. A alienação é a face que brota aguda da globalização financeira, da globalização do dinheiro. Encanta-se o mundo. O princípio e o fim são o discurso e a retórica. Então o que fica para o ser comum é a farsa do consumo. Não há referência à transformação do espaço e do tempo. O homem consumidor caminha no espaço do desconhecimento do mundo relacional e do falso e alardeado conhecimento do mundo das mercadorias. O fetiche, como e desde sempre, se realiza no ocultamento do valor de troca e no falso evidenciamento do valor de uso. É a utilidade que aparece, e que é proclamada em todo o universo informacional. Fala-se ao peito sangrando das mulheres e homens que não são consumidores. Para a competitividade, tem-se de chamar os consumidores, tem-se que oferecer o melhor, o mais barato, produzido desde a produtividade aumentada pelo trabalho dos intelectuais. Tudo para melhorar a competitividade.
Para Milton, a competitividade é ausência de compaixão. Tem a guerra como norma, e privilegia sempre os mais fortes em detrimento dos mais fracos. Busca fôlego na economia e despreza os que pensam mais para além. "Para tudo isso, também contribuiu a perda da influência da filosofia na formulação das ciências sociais, cuja interdisciplinaridade acaba por buscar inspiração na economia.”[9] Esta é uma das mais importantes reflexões levadas a efeito no interior de Por uma outra, na medida em que coloca um ponto focal que não é localizado costumeiramente no campo da ideologia. Cientistas sociais dos mais diferentes matizes sucumbem aos encantos da facilidade dos números e do falso realismo de uma formulação econômica ideologizada, que esquece os seres humanos e os substitui pelas equações e as tabelas estatísticas que ilusionam os dirigentes e metem medo a todos os que não querem padecer no inferno apontado pelos proclamadores da nova única. Se não aceitas as premissas e as evidências das projeções estatísticas da nova única, serás responsável pelo caos que há de vir.
Empobrece a ciência social em geral, nada para além da numerologia estatística. Investir nos setores sociais acarreta um custo que o capital não se propõe a pagar, e a ciência se curva, entra em letargia, deixa o mundo nas mãos dos economistas que vão levá-lo adiante de mãos com a lógica da relação produto capital e da competitividade. A ciência humana se faz pobre para interpretar um mundo confuso e conturbado e, desde logo, tudo a ciência econômica. Este enfoque modernoso atinge por caminhos nunca dantes navegados a maioria das falas e dos discursos. Grandes farsas são inventadas e reinventadas. O privilégio continua privilegiando o privilegiado. "Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território.”[10] Inclusive do território do pensar para impedir o pensar. Apoderam-se das mentes e dos corações e, por conseqüência, das vidas no pleno movimento da vivência. Tudo isto no mundo da competitividade. A competitividade revela a essência do território, os lugares apontam para as lutas sociais, trazendo a tona virtudes e fraquezas dos atores da vida política e da sociedade.
A cidadania se torna menor do que sua percepção. O cidadão pretende transcender o seu espaço primitivo. Todavia, o mundo, expresso desigualmente, não tem como regular os lugares em suas diversidades e, por conseqüência, a cidadania se faz menor. A desigualdade aponta a impossibilidade da generalização da cidadania. O espaço é esquizofrênico na expressão da exclusão social. Uns homens sentem-se mais cidadãos do que outros. Mas estes homens são apenas consumidores, pois a cidadania depende de sua generalização. Não existem cidadãos num mundo apartado. Não se é cidadão em um espaço onde todos não o são. São consumidores os que expressam direitos e deveres no âmbito do mercado e não no âmbito do espaço público, onde a política é realizada e o poder distribuído. Portanto, este é um mundo de alguns consumidores e poucos, pouquíssimos cidadãos. É preciso construir a cidadania.
A transição (conclusão)
O novo nasce sem que se perceba. Quase na sombra, o mundo muda de maneira imperceptível, todavia constante. Neste início de século, temos a consciência de que estamos vivendo uma nova realidade. As transformações atuais colocam os homens em permanente estado de perplexidade. A poluição e a desertificação se alastram, a super população e as tecno-epidemias etc., tornam o mundo diverso negativamente. A pobreza e a desigualdade, são produtos desta forma da produção do modo civilizatório capitalista. Este novo apresenta diferentes faces. Tudo isto como conseqüência da desestruturação da ordem industrial. O atual período histórico não é apenas a continuação do capitalismo ocidental, é mais. Melhor, é muito mais, é a transição para uma nova civilização. Esta transição que está em curso é preocupante para determinadas sociedades, desprotegidas na guerra das nações pela primazia na história.
Milton chama atenção para esta realidade. "No caso do mundo atual, temos a consciência de viver um novo período, mas o novo que mais facilmente apreende-se diz respeito à utilização de formidáveis recursos da técnica e da ciência pelas novas formas do grande capital, apoiado por formas institucionais igualmente novas. Não se pode dizer que a globalização seja, semelhante às ondas anteriores, nem mesmo uma continuação do que havia antes, exatamente porque as condições de sua realização mudaram radicalmente. É somente agora que a humanidade está podendo contar com essa nova realidade técnica, providenciada pelo que se está chamando de técnica informacional. Chegamos a um outro século e o homem, por meio dos avanços da ciência, produz um sistema de técnicas da informação. Estas passam a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando a presença planetária desse novo sistema técnico."[11]
É necessário, para compreender esse novo, o conhecimento de dois elementos fundamentais na formação social das nações: a formação técnica e a formação política. Uma permite a compreensão dos elementos tecnológicos que formam as composições necessárias à produção, e a outra indica que setores serão privilegiados com a organização possível da produção. “Na prática social, sistemas técnicos e sistemas políticos se confundem e é por meio das combinações então possíveis e da escolha dos momentos e lugares de seu uso que a história e a geografia se fazem e refazem continuamente.”[12] Desde esta compreensão, esta nova sociedade pode, inclusive, abrir uma nova época com a colocação de um novo paradigma social. Este paradigma pode ser posto como: a superação da nação ativa pela nação passiva.
Ou melhor, voltando ao velho Marx: a nação em si é superada pela nação para si. Para isto, é necessário que o velho/novo mundo periférico retome um projeto político de independência, fora dos moldes de projetos como o Mercosul, que nada mais representam do que a dependência em bloco, na medida em que este tipo de associação só serve à subserviência coletiva, levando grupos de países periféricos a deixar de submeterem-se isoladamente, para cair em bloco nos ardis do capital financeiro.
Finalmente, utilizando a dialética como referência, Milton mostra a batalha travada entre a nação passiva e a nação ativa, em uma transição política que envolve todos os espaços do viver, desde o espaço da vida cotidiana. A nação ativa, ligada aos interesses da globalização perversa, nada cria, nada contribui para a formação do mundo da felicidade, ao contrário da outra nação dita passiva que, a cada momento, cria e recria, em condições adversas, o novo jeito de produzir o espaço social, mostrando que a atual forma de globalização não é irreversível e a utopia é pertinente. ” É somente a partir dessa constatação, fundada na história real do nosso tempo, que se torna possível retomar, de maneira concreta, a idéia de utopia e de projeto.”[13] Desde esta compreensão, a globalização é um projeto irreversível da humanidade. Entretanto, não é esta a globalização desejada, e sim uma outra, a de todos.
Délio Mendes é Professor Dr. do Departamento de Sociologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP
Texto publicado pela Fundação Joaquim Nabuco, originalmente publicado na Revista Política Democrática, Brasília, Ano 1, n.2, p.191-197, 2001
Sobre o livro: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal. São Pauto: Record, 2000.
[1] SANTOS, Milton (1978) Pobreza urbana, Hucitec/UFPE/CNPU, São Paulo, Recife.
[2]SANTOS, Milton, Pobreza urbana, op. cit. p.29.
[3]SANTOS, Milton (1994), Técnica espaço tempo, Hucitec, São Paulo, p. 17.
[4]SANTOS, Milton (2000) Entrevista com SEABRA, Odete, CARVALHO, Mônica e LEITE, José Corrêa, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, p. 21.
[5]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal, Record, São Paulo.
[6]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - op. cit. p. 19
[7]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - op. cit. p. 31
[8]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - op. cit. p. 39
[9]SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - op. cit. p. 47
[10] SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - op. cit. p. 79.
[11] SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - op. cit. p. 142.
[12] SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - op. cit. p. 142
[13] SANTOS, Milton (2000) Por uma outra globalização - op. cit. p. 160
Promoção
Instituto de Pesquisas Sociais - INPSO, da FJN
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, da UFPE
Núcleo de Estudos Estratégicos - NEST, da UFPE
Apoio
Prefeitura da Cidade do Recife
UNESCO
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